Confira abaixo a decisão do juiz da 3ª Vara Criminal:
"ESTADO DO MARANHÃO
PODER JUDICIÁRIO
3ª VARA CRIMINAL DE SÃO LUÍS
Processo nº
15670-66.2016.8.10.0001
Investigação Criminal
Investigada – Raimunda Célia
Moraes da Silva Abreu ( art. 155, § 4º, II do CP).
Vítima – Nelma Celeste Souza
Silva Sarney Costa.
Trata-se de pedido de quebra de
sigilo bancário formulado pelo Ministério Público Estadual, encartado no Inquérito Policial n° 03/2016 – 1°
DECCOR/SECCOR, sob o fundamento de que é necessária a quebra de dados da vítima,
Sra. Nelma Celeste Souza Silva Sarney Costa, para a apuração da autoria
delitiva.
Como dito, o Ministério Público
Estadual entende imprescindível a quebra do sigilo para apurar a autoria
delitiva, baseando-se nas informações da autoridade policial de que a ficha do
caixa é documento essencial para apurar-se a autoria do delito de furto
qualificado mediante fraude.
Antes da análise do pedido faço
um registro importante, acerca da atitude colaborativa da Sra. Nelma Celeste
Souza Silva Sarney Costa na apuração do delito imputado a Raimunda Célia Moraes
Silva Abreu, conforme aponta, fl.285, e 287 a
Vice- Procuradoria Geral da República.
A sobredita Senhora consta como
vítima do delito de furto previsto no art. 155, § 4º, II do CP e o Estado,
através de seus órgãos de polícia e perseguição penal tenciona para o fim de
elucidar um crime contra o patrimônio desvestir a vítima de seu direito à
intimidade bancária.
Breve Relato. Decido.
Na esfera criminal, a quebra do
sigilo bancário só é possível quando a pessoa a ter o sigilo devassado seja objeto
de investigação criminal, com prova bastante da materialidade do crime e
indícios suficientes de autoria. E no caso dos autos a Sra. Nelma Celeste Souza
Silva Sarney Costa não tem contra si instaurada investigação criminal e nem a
notícias da existência de crimes e indícios de autoria direcionados a ela, mas
mesmos assim, o Ministério Público
objetiva ver quebrado o sigilo bancário de uma parte qualificada como vítima,
sob o pretexto do descobrimento da autoria do crime de furto qualificado, que
se apura no Inquérito n° 003/2016 – 1° DECCOR/SECCOR que tem como indiciada a
Sra. Raimunda Célia Moraes da Silva Abreu, portanto, com autoria certa.
A necessidade de investigação
criminal a cargo do Estado visando a apuração da autoria de determinado delito
não permite que sejam criados gravames maiores à vítima, do que aqueles já
previstos no tipo penal que a vitimou.
No caso, a vítima foi sujeito passivo do crime do art. 155,§4°,II do CP, e na
esteira da investigação criminal o Estado quer impor a retirada de um dos mais
importantes direitos civis que é a proteção dq intimidade. Isso é injustificável em face da proteção
constitucional do artigo 5°, X da Constituição Federal de 1988.
A quebra de sigilo bancário é
medida excepcional que somente pode ser deferida quando presentes os requisitos
legais. O direito à intimidade e a privacidade são assegurados pela
Constituição, direito fundamental que deve em regra ser preservado, podendo ser
descortinado quando o interesse público sopesado for superior ao interesse
jurídico do cidadão. E não é caso, pois o Estado, o grande Leviatã que pode
quase tudo, tem meios próprios de averiguar condutas de seus súditos sem
malferir direitos da vítima.
A legislação pátria (Lei n°
12.850/2013) permite o afastamento do sigilo bancário do investigado, quando
necessário para elucidação de crime, sendo imprescindível para verificar a
autoria e materialidade delitiva.
No caso em exame, chama a atenção
o fato do órgão ministerial pedir a
quebra de sigilo bancário da vítima e não da investigada. Ademais, o crime
investigado é o de furto, que tem como objetividade jurídica o patrimônio, o
que torna completamente desproporcional
a medida requerida, na medida em que tornaria devassado o próprio patrimônio
da vítima, o que justamente se buscou
preservar no tipo penal de furto.
A investigação criminal
deve-se se submeter aos ditames da lei,
bem como aos procedimentos legais pertinentes, sob pena de ofender o Estado de
Direito e os direitos fundamentais do cidadão, dentre os quais podemos indicar
o direito à privacidade e à intimidade.
Chama atenção o parecer do
Ministério Público Federal no STJ, de fls. 403/405, em que consta expressamente
que a vítima mantém uma postura colaborativa para a elucidação dos fatos, o que
denota mais uma vez a impertinência da medida requerida.
Urge ainda frisar que, ao
contrário do afirmado pelo órgão ministerial, todos os indícios constantes dos
autos levam a uma única pessoa já identificada, a indiciada Raimunda Célia
Moraes da Silva, tendo a própria autoridade policial afirmado à fl.382 , in
verbis: “ No seu interrogatório, Raimunda Célia afirmou que fazia empréstimos
com terceiros e em razão do montante de sua dívida, acabava fazendo um
empréstimo para pagar outro empréstimo e acabou em uma bola de neve”.
Sendo assim, se há indícios de
que a Sra. Raimunda Célia cometeu crime contra o patrimônio, se mostra
imprescindível a devassa no patrimônio da vítima?
A resposta é negativa. Primeiro, por ausência de
previsão legal de quebra de sigilo da vítima em hipóteses com a sub exame.
Segundo, por ausência de proporcionalidade da medida, no cotejo com o bem
jurídico protegido pela norma penal do crime de furto.
Os direitos fundamentais à
intimidade e à privacidade só podem ser afastados quando, sopesados com outros
direitos de igual relevância constitucional, tiverem que ceder espaço, sempre
com base na razoabilidade da medida. Como já afirmado, a medida pleiteada é
completamente desproporcional como fim pretendido.
Deve-se respeito ao Estado de
Direito Democrático, sob pena de voltar-se ao
período obscuro do AI-5, quando se desrespeitavam direitos e garantias
individuais ao simples alvedrio dos detentores de poder. Essa razão dos anos 60
que parece ter contaminado o momento o processo
no Brasil desde 2014 com o advento do uso do processo penal e direito
penal com o fim único de punir indivíduos específicos, ao invés de se fazer os dois como protetores de direitos
como limitadores à atuação do Estado, como anotado acima ,que pode quase tudo em face do indivíduo. Sempre é
devido respeito ao Estado de Direito e ao devido processo legal, com suas
garantias inerentes.
Levando-se em consideração a
premissa encampada pelo Ministério Público da necessidade de constatação da
autoria delitiva do crime de furto qualificado, a medida é completamente sem fundamento, eis que todos os indícios levam a uma mesma
pessoa já identificada.
Primorosa a lição do
magistrado Alexsander Fernandes Mendes,
elencando os pressupostos à quebra de sigilo bancário, em outras palavras, da
razoabilidade, “verbis”: “Os pressupostos para a quebra do sigilo bancário e
fiscal são: a) o início de prova do ilícito e sua autoria; b) a pertinência da
medida em relação ao delito investigado; c) a demonstração da
imprescindibilidade da prova para o êxito da investigação e a inexistência de
outros meios menos danosos para alcançar tal fim.” (Processo nº
2001.72.07.000699-3/SC, Juiz Federal da 4ª Região.).
O Superior Tribunal de Justiça
tem entendimento pacificado da necessidade de fundamentação quanto à
necessidade e proporcionalidade da medida invasiva. Vejamos:
Embora não sejam absolutas as
restrições de acesso à privacidade e aos dados pessoais do cidadão,
imprescindível é a qualquer decisão judicial a explicitação de seus motivos
(art. 93, IX, da Constituição Federal).
Diligências invasivas de acesso a
dados (bancários e fiscais) deferidas sem qualquer menção à necessidade e
proporcionalidade dessas medidas investigatórias. Nulidade reconhecida.
Habeas Corpus não conhecido e, de
ofício, concedida a ordem. STJ.HC 102934 / SP. Relator: Ministro Nefi Cordeiro.
Sexta Turma. DJe 11.12.2015.
Como afirmou-se em linhas acima
há necessidade da prova de existência de crime e indícios suficientes de
autoria, na medida em que a simples movimentação atípica não é suficiente para
dar ensejo a indiciamento em inquérito policial e sendo assim, restando
impossível medida de quebra de sigilo bancário, mormente quando incidir sobre a
vítima.
[.........]
1. Inquérito policial em trâmite
na Justiça Federal, para fins de apurar suposta movimentação financeira atípica
de pessoas físicas e jurídicas, devidamente identificadas, que não gozam de
foro de
prerrogativa de função. Dos fatos
narrados na investigação policial, não há nenhum elemento probatório a apontar
a participação de parlamentares, mas simplesmente de terceiros, os quais
carecem de prerrogativa de foro, não bastando para deslocar a competência para
o Supremo Tribunal Federal. Correta, portanto, a competência do Juízo Federal
para o respectivo processamento.
Precedentes.
2. Quanto à instauração de
inquérito policial resultante do Relatório de Inteligência Financeira
encaminhado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), nada há
que se questionar, mostrando ele totalmente razoável, já que os elementos de
convicção existentes se prestaram para o fim colimado.
3. Representação da quebra de
sigilo fiscal, por parte da autoridade policial, com base unicamente no
Relatório de Inteligência Financeira encaminhado pelo Conselho de Controle de
Atividades Financeiras (COAF). Representação policial que reconhece que a simples atipicidade de
movimentação financeira não caracteriza crime. Não se admite a quebra do sigilo
bancário, fiscal e de dados telefônicos (medida excepcional) como regra, ou
seja, como a origem propriamente dita das investigações. Não precedeu a
investigação policial de nenhuma outra diligência, ou seja, não se esgotou
nenhum outro meio possível de prova, partiu-se, exclusivamente, do Relatório de
Inteligência Financeira encaminhado pelo Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (COAF) para requerer o afastamento dos sigilos.
Não foi delineado
pela autoridade policial nenhum motivo sequer, apto, portanto, a demonstrar a
impossibilidade de colheita de provas por outro meio que não a quebra de sigilo
fiscal. Não demonstrada a impossibilidade de colheita das provas por outros
meios menos lesivos, converteu-se, ilegitimamente, tal prova em instrumento de
busca generalizada. Idêntico raciocínio há de se estender à requisição do
Ministério Público Federal para o afastamento do sigilo bancário, porquanto
referente à mesma questão e aos mesmos investigados.
4. O outro motivo determinante da
insubsistência/inconsistência da prova ora obtida diz respeito à inidônea
fundamentação, desprovida de embasamento concreto e carente de fundadas razões
a justificar ato tão invasivo e devassador na vida dos investigados. O ponto
relativo às dificuldades para a colheita de provas por meio de procedimentos menos gravosos,
dada a natureza das ditas infrações financeiras e tributárias, poderia até ter
sido aventado na motivação, mas não o foi; e, ainda que assim o fosse,
far-se-ia necessária a demonstração com base em fatores concretos que
expusessem o liame entre a atuação dos investigados e a impossibilidade em
questão.
A mera constatação de movimentação financeira atípica é pouco demais
para amparar a quebra de sigilo; fosse assim, toda e qualquer comunicação do
COAF nesse sentido implicaria, necessariamente, o afastamento do sigilo para
ser elucidada. Da mesma forma, a gravidade dos fatos e a necessidade de se
punir os responsáveis não se mostram como motivação idônea para justificar a
medida, a qual deve se ater, exclusiva e exaustivamente, aos requisitos
definidos no ordenamento jurídico pátrio, sobretudo porque a regra consiste na
inviolabilidade do sigilo, e a quebra, na sua exceção.
Qualquer inquérito
policial visa apurar a responsabilidade dos envolvidos a fim de puni-los, sendo
certo que a gravidade das infrações, por si só, não sustenta a devassa da intimidade (medida de
exceção), até porque qualquer crime, de elevada ou reduzida gravidade (desde
que punido com pena de reclusão), é suscetível de apuração mediante esse meio
de prova, donde se infere que esse fator é irrelevante para sua imposição.
O
mesmo raciocínio pode ser empregado para a justificativa concernente ao
"perigo enorme e efetivo que a ação pode causar à ordem tributária, à
ordem econômica e "às relações de consumo", as quais se encontram
contidas na gravidade das infrações sob apuração. A complexidade dos fatos sob
investigação também não autoriza a quebra de sigilo, considerando não ter
havido a demonstração do nexo entre a referida circunstância e a
impossibilidade de colheita de provas mediante outro meio menos invasivo. Provas
testemunhais e periciais também se prestam para elucidar causas complexas,
bastando, para isso, a realização de diligências policiais em sintonia com o
andamento das ações tidas por criminosas.
A mera menção aos dispositivos legais
aplicáveis à espécie, por si só, também não se afigura suficiente para suportar
tal medida, uma vez que se deve observar que tais dispositivos
"possibilitam" a quebra, mas não a "determinam", obrigando
o preenchimento dos demais requisitos legais. Máculas que contaminaram toda a
prova: falta de demonstração/comprovação inequívoca, por parte da autoridade
policial, da pertinência do gravoso meio de prova (isto é, ausência da
elucidação acerca da inviabilidade de apuração dos fatos por meio menos
invasivo e devassador); utilização da quebra de sigilo fiscal como origem
propriamente dita das investigações (instrumento de busca generalizada);
ausência de demonstração exaustiva e concreta da real necessidade e
imprescindibilidade do afastamento do sigilo; não demonstração, pelo Juízo de
primeiro grau, da pertinência da quebra diante do contexto concreto dos fatos
ora apresentados pela autoridade policial para tal medida.
O deferimento da
medida excepcional por parte do magistrado de primeiro grau não se revestiu de
fundamentação adequada nem de apoio concreto em suporte fático idôneo,
excedendo o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, maculando,
assim, de ilicitude referida prova.
5. Todas as demais provas que
derivaram da documentação decorrente das quebras consideradas ilícitas devem
ser consideradas imprestáveis, de acordo com a teoria dos frutos da árvore
envenenada.
6. Ordem concedida para declarar
nulas as quebras de sigilo bancário, fiscal e de dados telefônicos, porquanto
autorizadas em desconformidade com os ditames legais e, por consequência,
declarar igualmente nulas as provas em razão delas produzidas, cabendo, ainda,
ao Juiz do caso a análise de tal extensão em relação a outras, já que nesta
sede, de via estreita, não se afigura possível averiguá-las; sem prejuízo, no
entanto, da tramitação do inquérito policial, cuja conclusão dependerá da
produção de novas provas independentes. STJ. HC n° 193778/DF. Relator: Ministro
Sebastião Reis Júnior. Sexta Turma. DJE 05.12.2011.
Ante as razões acima expostas,
indefiro o pedido de quebra de sigilo bancário da vítima Nelma Celeste Souza Silva Sarney Costa.
Intimem-se.
São Luís(Ma), 12 de julho de
2017.
Clésio Coêlho Cunha
Juiz de Direito"