Para
os alheios à ciência do direito, cumpre esclarecer que a suspensão de liminar deferida pelo Presidente
do Tribunal e confirmada pelo Órgão Especial, não adentrou no mérito de acerto
ou desacerto da decisão do juiz da 5ª Vara da
Fazenda Pública da Comarca de São Luís que, nos autos da ação popular movida
por Domingos Dutra Filho e Bira do Pindaré, deferiu a liminar requerida
"para o fim de suspender o procedimento de indicação pela Assembleia
Legislativa em relação à escolha do Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado
do Maranhão.
O
Desembargador Guerreiro Junior ao analisar o pedido de suspensão de
liminar (processo nº 58.060/2013), deferiu
a suspensão da liminar do juiz da 5ª Vara. A decisão de Guerreiro foi
confirmada por acórdão do Órgão Especial quando do julgamento do agravo regimental nº 58.685/2013,
mas NÃO ADENTROU no mérito da
decisão do juiz da 5ª Vara, e nem poderia, por razões de impedimento legal.
A decisão
do Desembargador Marcelo Carvalho está bem fundamentada, não conflita com a
decisão de suspensão do Desembargador Guerreiro Junior, nem contraria a lei e a
jurisprudência dominante no tribunais.
SÓ UMA FRAUDE PODERÁ DERRUBAR OS FUNDAMENTOS
JURÍDICOS EXPOSTOS NA DECISÃO.
CONFIRA
OS FUNDAMENTOS DO DESEMBARGADOR MARCELO CARVALHO:
“.... No entanto, isso não retira o
interesse recursal do agravante, vez que a própria Lei nº 8.437/1992, no art.
4º, § 6º, permite a utilização concomitante do pedido de suspensão de liminar e
do recurso cabível consoante a lei processual, in litteris:
"§ 6º A
interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas ações
movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o
julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo." (grifei)
Não há, pois, qualquer relação de
prejudicialidade entre o pedido de suspensão de liminar e o agravo de
instrumento, até porque possuem finalidades distintas: o primeiro visa sobrestar a
eficácia da decisão proferida contra o poder público, sob a alegação de perigo
de lesão à ordem pública;
Já o segundo objetiva a reforma
do decisum, sem estar vinculado a nenhuma fundamentação específica.
Na suspensão de liminar, não se
discute o acerto ou desacerto da decisão, mas tão somente sua capacidade de
ocasionar lesão aos interesses públicos elencados na Lei nº 8.437/1992,
diferentemente do que ocorre no agravo, em que se analisa eventual error
in judicando ou error in procedendo da decisão atacada,
procedendo-se à sua reforma ou anulação conforme o caso.
Nesse sentido, colaciono os
ensinamentos de ELTON VENTURI (in Suspensão de Liminares e Sentenças
Contrárias ao Poder Público, 2 ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
2010, p. 99/101), citando tese de doutorado de MARCELO ABELHA
RODRIGUES, in verbis:
"Como já destacado, não possuem
os pedidos de suspensão natureza recursal. Assim sendo, não se
confundem com o recurso interponível para impugnar a decisão contrária ao Poder
Público, motivo pelo qual ambas as vias são, em tese, compartilháveis.
Enquanto o pedido de suspensão tem o
específico objetivo de retirar a eficácia da decisão judicial, o
recurso visa à cassação ou substituição da decisão recorrida, de maneira que
não há que se aludir à carência de interesse processual na dedução do incidente
de suspensão pela mera interposição de recurso cabível.
A utilização concomitante do recurso
cabível e do pedido de suspensão, aliás, hoje é expressamente autorizada por
força do § 6º do art. 4º da Lei nº 8.437/92, após a alteração determinada pela
MP 2.180-34, asseverando-se que
"a interposição do agravo
de instrumento contra liminar concedida nas ações movidas contra o Poder
Público e seus agentes não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de
suspensão a que se refere este artigo". Ou seja, aparentemente nada
obstaculiza a conjugação dos recursos ordinários (e mesmo os extraordinários) e
do incidente de suspensão, este último deduzido autonomamente em relação
àqueles.
(...)
Enfrentando o tema em sua tese de
doutoramento pela PUC-SP, MARCELO ABELHA RODRIGUES conclui pela legalidade da
cumulação mencionada, fundando-se na premissa de os institutos possuírem
naturezas diversas e, sobretudo, no fato de ser distinto o fumus boni
iuris que embasa um e outro instrumento.
Após negar a natureza cautelar dos
pedidos de suspensão, afirma o processualista capixaba que "no incidente requerido ao Presidente do
Tribunal não se discute a juridicidade ou não da decisão, simplesmente porque o
objetivo deste remédio não é por uma nova decisão no lugar.
O presidente não funciona nem poderia funcionar como revisor dos atos do
juiz, já que para isso existe recurso próprio para órgão colegiado do tribunal. Ao contrário, o efeito suspensivo que pode ser concedido no recurso de
agravo faz parte do próprio recurso de agravo (sendo medida acessória que pode
ser requerida pelo recorrente) e, por isso, atrelado ao seu pressuposto, qual
seja, retirar do universo jurídico, por um órgão colegiado, uma decisão que
está eivada de vício (de procedimento ou de juízo), e que, pela possibilidade
de que possa causar dano enquanto o recurso pende de julgamento, permite ao
relator desse recurso, mediante requerimento, suspender-lhe a execução. Ora,
parece claro que, embora o perigo da demora possa ser o mesmo num e noutro
caminho, é indiscutível que a relevância do fundamento que justifica a
utilização de um e de outro caminho são absolutamente distintos, justamente
porque cada um destes fundamentos está relacionado com a própria essência do
instituto escolhido"." (grifei)
Em sede jurisprudencial, colaciono o
seguinte julgado nesse sentido, verbis:
"AGRAVO REGIMENTAL. SUSPENSÃO
DE LIMINAR. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. NÃO CONFIGURADA. AGRAVO DE INSTRUMENTO
CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE. LICITAÇÃO. OBRAS DE INFRAESTRUTURA. AEROPORTO
DO GALEÃO. ADJUDICAÇÃO DO OBJETO DA LICITAÇÃO SUSPENSÃO. GRAVE LESÃO À ORDEM E
À ECONOMIA PÚBLICAS. AGRAVO DESPROVIDO.
1. Nos termos do § 3º do art. 15 da
Lei 12.016/2009, "A interposição de agravo de instrumento contra liminar
concedida nas ações movidas contra o poder público e seus agentes não prejudica
nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão (...)".
2. Da simples exegese do art. 15 da
Lei 12.016/2009 e seus parágrafos, constata-se que não há falar em usurpação de
competência do Superior Tribunal de Justiça para apreciar o pedido de suspensão
requerido pela Infraero. A uma porque a interposição do agravo de instrumento
não prejudica nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão (§ 3º); a duas porque não houve indeferimento do pedido de suspensão a
possibilitar novo pedido de suspensão às Cortes Superiores (§ 1º);
A três porque a possibilidade de
pedido de suspensão, a que se refere o § 2º da mencionada legislação, pressupõe
o desprovimento de agravo de instrumento e, na hipótese, à época em que foi
proferida a decisão ora impugnada, ainda não havia desfecho definido nos
agravos de instrumento interpostos. 3. A suspensão do procedimento licitatório,
já consolidada com a celebração do contrato de prestação de serviço, tendente à
realização de importante obra de infraestrutura aeroportuária, vinculada, entre
outros, à Copa do Mundo 2014 e às Olimpíadas 2016, sem a cabal demonstração de
existência de vícios insanáveis que macule o certame, é potencialmente lesiva à
ordem e à economia públicas, mormente diante da notória necessidade de
observância ao já apertado cronograma para adequação das instalações dos
aeroportos às exigências dos eventos que o país sediará. 4. Agravo regimental
improvido.
(TRF-1 - AGR SLT: 36119 DF
0036119-72.2012.4.01.0000, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL MÁRIO CÉSAR RIBEIRO,
Data de Julgamento: 01/12/2012, CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: e-DJF1
p.534 de 11/01/2013) (grifei)
Portanto, diante da diversidade de
finalidades dos instrumentos processuais em questão, não se pode falar em
prejudicialidade do agravo de instrumento em razão da suspensão de liminar
deferida pelo Presidente do Tribunal e confirmada pelo Órgão Especial.
Entender o contrário seria dizer que
o órgão julgador competente (no caso, a 1ª Câmara Cível) está impedido de rever
a decisão proferida pelo Juízo de primeiro grau, o que desvirtuaria todo o
sistema processual, funcionando o Presidente do Tribunal como instância
revisora das decisões proferidas pelos magistrados de base.
O Presidente do Tribunal, na
suspensão de liminar, analisa a matéria sob o estrito ângulo da ocorrência de
lesão à ordem pública, não podendo adentrar no juízo de acerto ou desacerto da
decisão proferida contra o Poder Público. Esta função cabe precipuamente aos
órgãos fracionários (Câmaras Cíveis Isoladas), que farão o juízo de manutenção,
reforma ou anulação do decisum recorrido.
O fato de a Lei nº 8.437/1992, em seu
art. 4º, § 9º, mencionar que a suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal
vigorará até o trânsito em julgado da decisão de mérito da ação principal não
impede que o ente público lance mão de recurso visando à reforma
do decisum contra si proferido, pois isso lhe trará uma situação
processual mais favorável, remanescendo, dessa forma, o interesse recursal.
Sobre o tema, escreve ALEXANDRE
CÂMARA (in Lições de Direito Processual Civil, Vol. II, 14a ed.,
Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 70), in verbis:
"A segunda "condição do
recurso" é o interesse em recorrer, que pode ser definido como a utilidade
do provimento pleiteado através do recurso. Haverá utilidade no recurso
interposto quando estiverem presentes a necessidade de interposição do recurso
e a adequação do recurso interposto."
Prossegue o autor (ibidem):
"Assim sendo, é preciso, para
que haja interesse em recorrer, que a interposição do recurso seja necessária.
Significa isto afirmar que somente haverá interesse em recorrer quando o
recurso for o único meio colocado à disposição de quem o interpõe, a fim de que
alcance, dentro do processo, situação jurídica mais favorável do que a
proporcionada pela decisão recorrida."
A decisão proferida em suspensão de
liminar, reitero, não possui o condão de reformar o decisum exarado
contra o Poder Público, mas apenas de retirar sua eficácia por razões de ordem
pública, diferentemente do que ocorre no julgamento do recurso pelo órgão
competente, que exercerá juízo pleno de valor sobre o provimento jurisdicional
atacado.
III.I Ato "interna corporis":
não configuração. Possibilidade de controle pelo Poder Judiciário.
Os autos cuidam de ação popular
ajuizada por Domingos Francisco Dutra Filho e Ubirajara do Pindaré Almeida
Sousa contra o Estado do Maranhão, impugnando o ato de convocação dos
interessados a concorrer à vaga de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado
do Maranhão, decorrente da aposentadoria do Conselheiro Yêdo Flamarion Lobão.
O cerne da irresignação dos ora
agravados consiste na ausência de publicidade do edital de convocação, já que
estabeleceu que as inscrições dos interessados deveriam ser realizadas entre os
dias 14 e 19 de novembro de 2013, quando a publicação ocorreu no própria dia 14
de novembro de 2013 no Diário Oficial da Assembleia, que circulou apenas em 18
de novembro de 2013, visto que o dia 15 foi feriado (Proclamação da República)
e os dias seguintes foram sábado e domingo, bem como na existência de
requisitos não previstos nas Constituições Estadual e Federal a serem
preenchidos pelos candidatos.
Pois bem.
Inicialmente, considero que a ação
popular é sim meio adequado a impugnar o procedimento administrativo de escolha
de Conselheiro do TCE/MA.
A ação popular é remédio
constitucional colocado à disposição do cidadão para a anulação de ato lesivo
ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural
(Constituição Federal, art. 5o, LXXIII).
[...]
Portanto, se, no caso dos autos os
agravados, apontam violação de princípios da Administração Pública consagrados
na Constituição Federal no âmbito do procedimento destinado à escolha de
Conselheiro de Tribunal de Contas do Estado do Maranhão, é evidente que esta
matéria pode ser trazida ao Poder Judiciário por meio de ação popular.
Cabe, portanto, ao Poder
Judiciário analisar se existem as ilegalidades apontadas pelos agravados no
processo de preenchimento da vaga de Conselheiro do TCE/MA, porquanto notório o
interesse público envolvido.
É interesse de toda a sociedade que o
membro de um Tribunal de Contas Estadual seja escolhido em procedimento que
observe os princípios constitucionais. Trata-se da Corte que possui a missão
constitucional de julgar as contas de todos os administradores públicos,
conforme art. 70 e ss. Da CF/88. É a proteção da coisa pública que está em
jogo.
Assim, violado algum preceito de
índole constitucional no processo de escolha de membro de Tribunal de Contas,
seja Estadual ou da União, restarão atingidos, de forma manifesta, o patrimônio
público e a moralidade administrativa.
[....]
Assim, verificada a ocorrência de
qualquer ato capaz de macular a higidez desse processo, cabível o ajuizamento
de ação popular, tal como veiculado pelos agravados no presente caso.
E pelo que vejo da análise dos
autos, a medida liminar pretendida pelos agravados, que foi deferida pelo Juízo
de base, merece ser mantida, ante o preenchimento dos requisitos autorizadores.
Com efeito, restou devidamente
caracterizada a violação ao princípio da publicidade no procedimento de
convocação dos interessados a concorrer à vaga de Conselheiro do Tribunal de
Contas do Estado do Maranhão.
A referida vaga foi aberta em razão
da aposentadoria do Conselheiro Yêdo Flamarion Lobão, em 15 de outubro de 2013,
sendo que o Presidente do TCE/MA designou o Conselheiro Antônio Blecaute Costa
Barbosa para atuar como seu substituto, conforme Portaria nº 1.240/2013.
O edital para convocação de
interessados a concorrer à vaga de Conselheiro do TCE/MA foi publicado no
Diário da Assembleia Legislativa em 14 de novembro de 2013 (fls. 84/85).
Sucede que o prazo para inscrição dos
interessados foi estipulado no período de 14 de novembro de 2013 a 19 de
novembro de 2013. Ou seja, iniciou-se no mesmo dia em que o edital foi
publicado no Diário da Assembleia Legislativa!
Essa circunstância, por si só, já
denota a dificuldade que os interessados teriam para entregar toda documentação
necessária para o pleito, em prazo tão exíguo, cujo termo inicial coincidiu com
a própria publicação do edital no Diário Oficial.
A dificuldade se apresenta ainda
maior por se tratar o dia 14 de novembro de 2013 de véspera do feriado da
Proclamação da República (dia 15 de novembro de 2013, uma sexta-feira),
seguindo-se de sábado e domingo. Assim, dos 6 (seis) dias do prazo, apenas 3
(três) eram dias úteis, o que resulta em manifesto empecilho aos interessados
na disputada da vaga de Conselheiro do TCE/MA.
É evidente que a publicação do edital
em 14 de novembro de 2013, determinando o início do prazo de inscrição dos
candidatos ao cargo de Conselheiro vago nesse mesmo dia, representou manifesta
surpresa aos interessados, os quais tiveram que, às pressas, reunir toda
documentação exigida.
O ato administrativo em questão
transbordou a razoabilidade. Como pode um interessado ser comunicado de um
prazo no dia do seu início? E em se tratando de um prazo tão exíguo (seis dias,
apenas três úteis), diante de tantas providências exigidas pelo edital de
convocação dos interessados ao cargo de Conselheiro do TCE/MA?
Segundo o edital de convocação, os
candidatos deveriam apresentar: currículo integral, com a juntada de todos os
documentos comprobatórios das afirmações que o currículo fizer, todos em via
original ou cópias autenticadas; comprovar mais de 10 (dez) anos de exercício
de função pública ou efetiva atividade que exija conhecimentos jurídicos,
contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública; obedecer ao
disposto no Decreto Legislativo nº 151/90.
Como se vê, as exigências do edital
não são simples de serem cumpridas. A exiguidade do prazo praticamente
inviabilizou os interessados de reunir toda documentação necessária para
comprovar os requisitos do edital, ao não ser para aqueles que, eventualmente,
possuíam alguma informação privilegiada...
Será que o escolhido para a vaga já estava definido previamente? O
procedimento de escolha do novo Conselheiro do TCE foi mera formalidade?
E outro fato grave que deve ser
salientado, embora não tenha sido objeto da decisão agravada, é a ausência do
preenchimento dos requisitos constitucionais por parte do único candidato que
pôde obter a inscrição, o Sr. Joaquim Washington Luiz Oliveira, cuja formação
superior é a graduação em História, consoante comprova o próprio sítio
eletrônico do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão.
A Constituição Federal é bem clara ao
estabelecer os requisitos para ingresso no Tribunal de Contas da União,
conforme art. 73, verbis:
"Art. 73. O Tribunal de Contas
da União, integrado por nove Ministros, tem sede no Distrito Federal, quadro
próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional, exercendo, no
que couber, as atribuições previstas no art. 96.
§ 1º - Os Ministros do
Tribunal de Contas da União serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os
seguintes requisitos:
I - mais de trinta e cinco e menos de
sessenta e cinco anos de idade;
II - idoneidade moral e reputação
ilibada;
III - notórios conhecimentos
jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública;
IV - mais de dez anos de exercício de
função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos
mencionados no inciso anterior." (grifei)
Tais exigências são aplicáveis aos
Tribunais de Contas Estaduais, por força do art. 75 da CF/88, litteris:
"Art. 75. As normas
estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição
e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito
Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios.
Parágrafo único. As Constituições
estaduais disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos, que serão
integrados por sete Conselheiros." (grifei)
Nessa mesma linha, o art. 52 da
Constituição Estadual, verbis:
"Art. 52. O Tribunal de Contas
do Estado, integrado por sete Conselheiros, tem sede na capital do Estado,
quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território estadual, e exerce,
no que couber, as atribuições previstas no art. 76 desta Constituição.
§ 1º - Os Conselheiros do Tribunal de
Contas do Estado serão nomeados dentre brasileiros que satisfaçam os seguintes
requisitos:
I - mais de trinta e cinco e menos de
sessenta e cinco anos de idade;
II - idoneidade moral e reputação
ilibada;
III - notórios conhecimentos
jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública;
IV - mais de dez anos de exercício de
função ou de efetiva atividade profissional que exija os conhecimentos
mencionados no inciso anterior." (grifei)
Indago: quais os notórios
conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de
administração pública podem ostentar alguém graduado em História?
Outro registro necessário diz
respeito à exigência contida no art. 1º do Decreto Legislativo nº 151/90,
segundo o qual a indicação do candidato ao cargo de Conselheiro do TCE/MA
deverá ter o "apoiamento de um terço dos membros da Assembleia, não
podendo o deputado assinar mais de uma indicação".
Essa previsão, evidentemente,
representa uma ofensa às minorias parlamentares, permitindo que apenas os
candidatos apoiados pelo grupo dominante na Casa Legislativa estejam
habilitados a concorrer ao cargo vago.
O Constituinte de 1988 pensou em
critério eminentemente democrático, viabilizando a pluralidade de ideias, além
de conceder às minorias parlamentares o direito de representação.
Essas circunstâncias, repito, ainda
que não tenham sido ventiladas na decisão agravada, são de suma importância
para o deslinde da causa, evidenciando as máculas do procedimento de indicação
ao cargo vago de Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão.
Voltando ao ponto anterior, reitero
que a publicação do edital convocatório aos interessados a concorrer à vaga de
Conselheiro do Tribunal de Contas deveria ter sido feita em momento anterior ao
período de inscrição, até para permitir aos candidatos providências quanto à
documentação expressa no edital.
Em verdade, do modo como
ocorreu in casu, a publicação do edital representou manifesta surpresa,
contrariando, de forma manifesta, o interesse público de preencher a vaga de
Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranhão com os candidatos mais
aptos do ponto de vista técnico.
Como é sabido, a Administração Pública,
ao exercer suas atividades, deve obedecer os princípios expressados
no caput do art. 37 do Constituição Federal de 1988, verbis:
Art. 37. A administração pública
direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998) (grifei)
Com efeito, a publicidade dos atos
administrativos é traço de relevante significância para a Administração, tendo
em vista que a aferição da aplicabilidade dos demais princípios constitucionais
que devem reger sua conduta, somente é possível na medida em que haja sua
veiculação externa, ou seja, que o ato tenha divulgação.
A República Federativa do Brasil está
fundada no pórtico da cidadania, para a qual é imprescindível a transparência
da atuação dos agentes da Administração, como forma de propiciar a verificação
da legalidade e da eficiência desses atos.
Este princípio, na hipótese dos
autos, foi desrespeitado pela Assembleia Legislativa, não sendo possível alegar
que se trata de mero ato interna corporis, a escapar do controle do Poder
Judiciário.
Ora, a escolha de um Conselheiro do
Tribunal de Contas do Estado do Maranhão pode ocorrer de forma açodada,
impedindo a livre concorrência dos interessados no cargo vago? A Assembleia Legislativa
tem carta branca para malferir os princípios constitucionais, porque se tratam
de atos interna corporis?
A resposta, logicamente, é negativa.
O procedimento administrativo que
objetiva ao preenchimento de vaga de Conselheiro de Tribunal de Contas não pode
ser considerado mero ato interna corporis e pode sim sofrer controle
do Poder Judiciário quando verificada a ocorrência de violação de princípios
constitucionais, como no presente caso.
A interpretação da Constituição
Federal não é e nunca foi algo que possa ser reduzido às meras vicissitudes e
meandros de uma instituição, sob pena de dar-se azo a que cada um interprete o
regramento constitucional à sua maneira.
A Constituição não é ornamental, não
se resume a um museu de princípios, não é meramente um ideário; reclama
efetividade real de suas normas. Destarte, na aplicação das normas
constitucionais, a exegese deve partir dos princípios fundamentais para os
princípios setoriais. E, sob esse ângulo, merece destaque o princípio fundante
da República que destina especial proteção a dignidade da pessoa humana.
O mestre Juarez Freitas é incisivo. O
Poder Judiciário pode proceder à sindicabilidade de qualquer ato da
Administração Pública (in O controle dos atos administrativos e os
princípios fundamentais. 4. ed. ref. e amp. São Paulo: Malheiros, 2009).
O Ministro LUIZ FUX, em decisão
proferida no Mandado de Segurança nº 31.816, foi preciso ao abordar o ponto:
"Preliminarmente, é preciso
demarcar que a jurisprudência tradicional desta Corte se consolidou no sentido
de que tais assuntos se qualificam como questões interna corporis,
considerando-os imunes ao controle judicial. Subjacente a tal orientação
encontra-se um resquício da concepção ortodoxa do princípio da separação de
poderes, que, de certa forma, ainda visualiza a existência de domínios infensos
à intervenção judicial, reservados que seriam à instituição parlamentar,
responsável pela solução final de toda e qualquer matéria emergente no seu
interior.
Tal concepção, todavia, não parece a
mais adequada. Em um Estado Democrático de Direito, como o é a República
Federativa do Brasil (CF, art. 1o, caput), é paradoxal conceber a existência de
campos que estejam blindados contra a revisão jurisdicional, adstritos
tão-somente à alçada exclusiva do respectivo Poder. Insulamento de tal monta é
capaz de comprometer a própria higidez do processo legislativo e, no limite, o
adequado funcionamento das instituições democráticas. Daí por que se impõe revisitar
esta atávica jurisprudência do Tribunal."
Quanto à necessidade de intervenção
do Poder Judiciário, colaciono os ensinamentos de ANDRÉ DEL NEGRI
(in Processo Constitucional e Decisão Interna Corporis, Belo
Horizonte: Fórum, 2011, p. 113-114):
"Em nosso sistema jurídico não
está permitido ao Legislativo, ao Executivo e nem ao Judiciário, a violação de
direitos fundamentais. Se o artigo 2º da Constituição Federal fala
emindependência e harmonia (expressão muitas vezes pronunciada
de forma aritmética e muito sonora), a independência cada qual das
funções a tem (nenhuma função é submetida à serventia da outra). Lado outro,
a harmonia é o comprometimento de todas as funções com a textualidade
constitucional brasileira. Assim, salienta-se: todas as funções públicas têm
que agir de acordo com a legislação. Não há que se falar em abusos travestidos
de legalidade, por nenhuma delas. Portanto, não há harmonia se as funções não
funcionarem como sistemas abertos (locus de testificação processual)
ou se uma das funções apresentar entraves à fruição dos direitos fundamentais
dos legitimados ao processo (povo). Se assim o é, necessário repetir
o raciocínio: não é possível sustentar teoricamente no ordenamento jurídico
brasileiro que a função jurisdicional não poderá interferir nas
decisões interna corporis sob pena de interferir no princípio da
separação de funções, pois o ponto básico de desacerto teórico é o de que só o
Legislativo pode prolatar decisão a respeito de equívocos na
aplicabilidade do regimento interno.
É claro, pois, que com o advento da
Constituição de 1988, as funções
ditas harmônicas e independentes entre si passaram a ter um
vaso comunicante que desemboca no Judiciário. Não é mais possível, depois de
1988, no Brasil, a defesa cristalizada ao molde secular de uma separação
de "poderes" (as aspas servem para lembrar que a palavra é
carregada de mito - mito dos poderes), uma vez que se o Legislativo (qualquer
das Casas do Parlamento) quando não cumprir o regimento interno, que é
mero procedimento apto a cumprir devido processo
legislativo, há como estabelecer uma provocação fiscalizatória. Do
contrário, se isso não fosse possível, teríamos um erro teórico gravíssimo que
é o de deixar o Texto Constitucional à livre deliberação dos legisladores com a
maior garantia de que essa decisão não pudesse ser falsificabilizada.
Desta forma, a lei do legislador ficaria confortavelmente imune ao
controle de constitucionalidade no processo legislativo, o que consequentemente
conduziria a questão a parâmetros de ilegitimidade transformando a
decisão interna corporis no túmulo da democracia.(grifei)
Ainda nessa esteira, o magistério de
BRUNO CLÁUDIO PENNA AMORIM PEREIRA (in Jurisdição Constitucional do
Processo Legislativo: legitimidade, reinterpretação e remodelagem do sistema no
Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 162/163):
"No contexto do paradigma do
Estado Democrático de Direito, a Constituição - não somente considerada como o
conjunto de regras jurídicas definidoras das relações do poder político e do
estatuto dos governantes e governados, mas, principalmente, como ordem
garantidora dos direitos fundamentais - deve possibilitar ao povo, como
beneficiários diretos de suas disposições, a sua absoluta invocação,
interpretando-a da forma mais aberta e abrangente possível, a fim de dar plena
efetividade aos direitos humanos, cuja tarefa é a função precípua e
legitimadora da jurisdição constitucional.
Como consequência, a Constituição -
inserida em uma ordem política democrática, cuja interpretação é atribuída a
uma sociedade aberta de intérpretes, a qual conjuga "todas as potências
públicas, participantes materiais do processo social" - tem como espírito
e finalidade intrínseca a garantia de participação popular do poder e das
decisões políticas, consubstanciada por meio de um processo legislativo
democrático, em que haja a plena observância das normas constitucionais,
inclusive na aplicação e interpretação das normas regimentais, as quais devem,
como consequência lógica, conformar-se com os valores, princípios, normas e
regras constitucionais, possibilitando e legitimando, assim, a jurisdição
constitucional do processo legislativo, como função essencial da jurisdição
constitucional, em prol da plena efetivação dos direitos fundamentais.
Corroborando esse entendimento, o
Ministro Celso de Mello asseverou em seu voto, quando do julgamento do Mandado
de Segurança nº 22.503-3/DF (DJ, 06 jun. 97):
A imperiosa necessidade de
fazer prevalecer a supremacia da Constituição, a que se acha necessariamente
subordinada a vontade de todos os órgãos do Estado que se revelam
depositários das funções político-jurídicas definidas pela teoria da separação
dos poderes, e a inafastável obrigação de tornar efetivas as
cláusulas regimentais que disponham, em caráter mandatário e vinculante, sobre
o modo de elaboração legislativa legitimam, plenamente, a atuação
do Poder Judiciário no processo de formação dos atos normativos, em ordem a
permitir, no plano da judicial review, a exata aferição do fiel
cumprimento, pelo Poder Legislativo, das diretrizes, dos princípios e
das regras inscritas tanto na Lei Fundamental da
Repúblicaquanto no regimento interno, que condicionam - considerada a
indisponibilidade de determinadas normas regimentais de caráter
procedimental - a própria validade e eficácia das resoluções tomadas pelas
Casas legislativas." (grifei)
Assim, na hipótese dos autos, não há
como admitir a discricionariedade da Assembleia Legislativa de estipular, sem
observância do princípio da publicidade, edital com prazo exíguo e publicado
sem qualquer antecedência para conhecimento dos interessados, especialmente
considerando a complexidade das exigências ali dispostas.
O Poder Judiciário não pode assistir
o malferimento das disposições constitucionais, abstendo-se de efetuar o
controle que é próprio da sua função de guardião da Constituição, mormente
quando provocado por quem de direito.
Esse foi o entendimento manifestado
pelo Juízo de primeiro grau ao deferir a liminar pleiteada pelos agravados,
determinando a suspensão do procedimento de escolha do Conselheiro do Tribunal
de Contas do Estado do Maranhão, para a vaga deixada pelo Conselheiro Yêdo
Flamarion Lobão.
E com todas as vênias ao Órgão
Especial deste Tribunal de Justiça, entendo que a decisão agravada não
representa qualquer lesão à ordem pública, de modo a autorizar a suspensão de
liminar.
Com efeito, a suspensão do
procedimento de indicação dos candidatos ao cargo de Conselheiro do TCE/MA em
nada atrapalharia o exercício das funções na referida Corte de Contas, até
mesmo porque já havia sido designado um Conselheiro Substituto, conforme
Portaria nº 1.240.
Nesse sentido, destaco trecho da
decisão agravada que assim pontuou: "Decisão que se toma ad cautelam,
para mais adiante evitar-se mal maior e até porque, pequeno retardamento para
observação legal do procedimento constitucional/legal, em nada inviabilizaria o
funcionamento daquele órgão de contas" (fls. 27).
Portanto, a liminar proferida pelo
Juízo a quo resguardou o interesse público, evitando a ultimação de
um procedimento violador das garantias constitucionais.
Lesão à ordem pública ocorrerá, aí
sim, caso seja reconhecida a nulidade do procedimento na sentença de mérito da
ação popular, quando a nomeação do agora Conselheiro Joaquim Washington Luiz
Oliveira deverá ser desfeita. O prejuízo, certamente, será muito maior a todas
as partes.
Seria muito mais prudente e
recomendável aguardar o desfecho da ação popular, o que, repito, não causaria
qualquer lesão à ordem pública, vez que a vaga em aberto poderia facilmente ser
exercida pelo Conselheiro Substituto.
Essa situação, por exemplo, é bem
comum no Poder Judiciário. Quando um Desembargador se aposenta e é aberto o
procedimento para promoção, outro membro do Tribunal permanece na condição de
Substituto, até à efetivação do novo Desembargador.
Recentemente, este Tribunal de
Justiça teve que aguardar mais de um ano pelo membro que iria preencher o
quinto constitucional reservado aos advogados, por conta da discussão sobre a
elegibilidade de um candidato que estava sendo travada na Ordem dos Advogados do
Brasil.
Nesse caso, não houve qualquer lesão
à ordem pública no fato do Tribunal de Justiça esperar pelo novo membro advindo
da advocacia. Pelo contrário, mostrou-se mais prudente aguardar o desfecho da
controvérsia no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil, para não se ter
dúvidas de que o Desembargador nomeado estava apto a assumir o cargo
legalmente.
Assim, não verifico, tal como decidiu
o Órgão Especial, que o Poder Judiciário praticou indevida ingerência em
matéria interna corporis do Poder Legislativo, de modo a configurar
lesão à ordem pública, em razão da afronta ao princípio constitucional da
separação dos poderes.
Houve sim o controle de legalidade
pelo Poder Judiciário em relação a ato manifestamente contrário aos princípios
constitucionais que regem a Administração Pública.
A Carta de 1988 inseriu no artigo
acima citado, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito", ou seja, qualquer lesão ou ameaça a direito deve ser
conhecida pelo Poder Judiciário.
Sobre os aspectos históricos de
inserção de tal garantia na Carta Magna, e as diretrizes do princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional, veja-se a lição do Doutor e Mestre
FLAVIO GALDINO[1]:
"Na década de 1960 o País é
colhido por novo momento de autoritarismo - o chamado "Golpe Militar de
1964". Novamente ocorrerá concentração de poderes - executivos e
legislativos - no Poder Executivo. Dessa feita, verificou-se grande empenho por
parte daqueles que tomaram o governo em institucionalizar esse poder (não por
acaso editaram-se Atos Institucionais), criando um novo manto de legitimidade
formal através da jurisdicização de seus atos. Um excelente registro desse
período - também injustamente esquecido - vem da lavra do eminente Professor
Felippe Augusto de Miranda Rosa.
Considerando a resistência inicial de
vários setores do Poder Judiciário em serem cooptados pelo regime
autoritário (rectius: em legitimarem o poder ditatorial) - sendo
exemplo notável a mais alta Corte do País, o Supremo Tribunal Federal-, mais
uma vez o Poder Executivo "constituído" excluiu do Poder Judiciário a
possibilidade de apreciação de determinados atos praticados pelo governo
"revolucionário" - desconsiderando-se aqui várias outras medidas
adotadas contra magistrados (punições, aposentadorias) e com o escopo de
reduzir a amplitude do controle judicial, que de fato foi praticamente anulado
durante anos.
Dessa feita a exclusão se deu através
de dois movimentos diferentes, um deles deveras ímpar. De um lado, de modo
bastante original, houve a transferência para a Justiça Militar da competência
para julgar várias espécies de causas "civis", registrando a história
que a estratégia do governo militar naufragou, pois embora os julgadores de
primeiro grau (militares) fossem submissos aos ditames ditatoriais do governo,
o Superior Tribunal Militar, formado por militares de elevada patente e,
portanto, com espírito crítico e liberdade de juízo, além de conhecedores do
direito, manteve notável independência, reformando decisões favoráveis aos
intentos da "Revolução".
De outro lado, a exemplo do que
ocorrera na década de 1930, simplesmente excluíram-se da apreciação do Poder
Judiciário determinados atos praticados pelo governo militar (por exemplo,
medidas adotadas pelo "comando supremo da revolução"). A identidade
de situações indicará, como se conclui adiante, uma convergência dos movimentos
teóricos.
O famigerado Ato Institucional nº 5,
de 1968 (AI-5), excluiu da apreciação do Poder Judiciário qualquer ato
praticado com base nele mesmo. Sem embargo de (ao depois) se considerar tal ato
inconstitucional, por violação do então disposto no art. 150, § 4º da
Constituição de 1967, sua vigência evidenciou uma lacuna irreparável no sistema
de prestação e proteção jurisdicional, realmente comprometendo a própria
caracterização do Estado brasileiro de então como um Estado Democrático de
Direito.
Por fim, essa fase enfrentou ainda a
edição da EC 7/77, que instituiu (normativamente) o contencioso administrativo,
que aliás já estava previsto na EC 1/69, o qual, contudo, malogrou, não
tendo sido amparado pela Carta Constitucional ulterior (e vigente). O
contencioso administrativo é entendido como um sistema em que a própria
administração exerce função judicante. A doutrina da época - em posição
nitidamente revestida de caráter político e libertário - construiu o entendimento
de que a criação do contencioso administrativo não impediria a apreciação
judicial dos atos administrativos.
Como resposta ao momento político de
alijamento do Poder Judiciário, novamente volta-se a considerar como ponto
central dos questionamentos e das conclusões, a possibilidade de acesso ao
Poder Judiciário e não as atividades processuais ou mesmo o resultado efetivo
do processo.
O reflexo imediato dessa situação
política - que mereceu, além da evidente resistência política, severa crítica
doutrinária - no plano teórico-jurídico foi a retomada da ênfase na ideia de
inafastabilidade do controle judicial 66 como garantia da separação de
poderes, redundando na redação do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de
1988.
Evidentemente, considerando o caráter
cumulativo dessa evolução, a "nova" inafastabilidade absorve a
anterior evolução do conceito de ação, contendo a Constituição previsão
expressa de diversas outras garantias processuais (devido processo legal,
motivação etc.).
Assim, retomadas as premissas da
ubiquidade, tem-se que o princípio da inafastabilidade: (i) é uma resposta aos
abusos do Poder Executivo, cuidando preponderantemente da relação entre os
poderes; (ii) tem por escopo preservar a separação e o equilíbrio entre os
poderes; (iii) é dirigido ao legislador e não ao juiz.
E, além disso, (iv) incorpora as
garantias essenciais do processo (contraditório, motivação etc.)." (grifei)
Indago: será que o constituinte de
1988 fixou o princípio acima pensando que poderia sofrer limitação perante o
Executivo? Ou o Legislativo?
Ives Gandra da Silva Martins[2]uma
das maiores autoridades constitucionais deste país é incisivo quando diz:
"É, talvez, um dos mais
relevantes dispositivos do art. 5º. O Poder Judiciário é um poder neutro e por
essa razão, sou contrário ao seu controle externo. O Judiciário é um poder
técnico, que deve dar a garantia aos cidadãos e, de certa forma, controlar os
poderes políticos, o Executivo e o Legislativo, para respeitarem a lei e a
Constituição e não cometerem abusos contra a cidadania. Todos os cidadãos têm o
direito de obter a prestação jurisdicional. Todo cidadão pode ir a juízo,
inclusive contra o Estado, para fazer valer os seus direitos. O direito de
pedir a proteção ao Judiciário ou pleitear a defesa de determinados interesses
não pode ser obstado. (...) O direito de recorrer ao Judiciário é assegurado a
qualquer pessoa. (...) Dentro dessa linha, o dispositivo é fundamental porque
dá a todo cidadão o direito de fazer valer a Constituição dirigindo-se ao único
poder com tal capacidade e tal competência, que é o Poder Judiciário. Como já
foi dito, trata-se de um poder técnico e não político - sua função é preservar
a Constituição brasileira".
Ensina a saudosa Professora Lúcia
Valle Figueiredo[3], in
verbis:
"Nesta Constituição de 1988, o
controle jurisdicional viu-se ampliado, com a inclusão da possibilidade de
socorro ao Judiciário apenas por ameaça de lesão, conforme já afirmado. Temos,
desde a promulgação da Constituição, enfatizado que o poder cautelar do juiz,
pós-Constituição de 1988, não depende de legislação infraconstitucional e,
ademais disso, e, sobretudo, não pode ser amesquinhado por qualquer lei
ordinária, menos ainda por medidas provisórias. Seu berço é constitucional e
representa, sem dúvida, uma das cláusulas "pétreas", como comumente
denominadas, ou cerne fixo da Constituição. O inciso XXXV do artigo 5º é de
clareza exemplar: Qualquer lesão ou ameaça de lesão poderá ser submetida à
apreciação do Judiciário. Abrem-se, pois, completamente as portas do
Judiciário. Deveras, o controle judicial alargou-se. Se toda e qualquer ameaça
pode ser conhecida pelo Judiciário, as medidas acautelatórias defluem
diretamente do Texto Constitucional, como afirmado anteriormente. Autoriza,
pois, a afirmação da inconstitucionalidade de legislação infraconstitucional
que pretender amesquinhar - como vem ocorrendo - o controle
jurisdicional".
Por isso, diante dos argumentos
significativos dos doutrinadores acima citados, a velha e cansada tese que o
Poder Judiciário não pode penetrar na intimidade do exame do mérito da decisão
administrativa em decorrência do princípio da separação de poderes, da
conveniência, a utilidade, e a oportunidade, deve ser (re)pensada pelos
operadores do direito.
A vedação do exame do mérito
administrativo é uma criação do próprio Estado Autoritário. A velha
concentração de poder do Estado quanto aos seus súditos.
O Poder Judiciário deve zelar pelo
Estado de Direito. Não significa a produção de um ativismo exagerado ou
ativismo nato. O exame do mérito deve ser verificado a partir do momento que o
gestor provoca um quiasma em um dos princípios constitucionais. Nesse momento,
o Poder Judiciário estará para verificar se existe, ou não, causa legítima que
autorize aquele ato.
Neste ponto, colaciono a lição do não
menos renomado ADILSON ABREU DALLARI[4]:
"Direito é divergência.
Diferentes intérpretes, partindo de diferentes premissas, podem chegar a
diferentes conclusões. A doutrina já avançou o suficiente para perceber que os
textos legais comportam uma pluralidade de interpretações. Cabe ao intérprete,
diante do caso concreto, buscar a interpretação mais adequada à salvaguarda do
interesse público, valendo-se, para isso, da interpretação sistemática,
partindo dos princípios jurídicos para chegar à solução do caso concreto:
"Destarte, assumindo uma ótica
ampliativa e mais bem equipada, a interpretação sistemática deve ser definida
como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação, dentre várias
possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os
num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da
conformação teleológica, tendo em vista solucionar os casos concretos"
(FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. São Paulo: Malheiros,
1995, p. 54).
(...)
Interpretar os textos jurídicos, para
aferir o real significado de seus mandamentos, não é um fim em si e nem uma
atividade lúdica. O trabalho do intérprete é instrumental ou, pelo menos deve
estar voltado para a busca da solução mais adequada e mais justa dos problemas
suscitados.
Afaste-se o intérprete sério e
realmente preocupado com a realização da Justiça segundo a Constituição, daqueles
que, conforme destaca José Roberto Dromi (Derecho administrativo. 4.
ed. Buenos Aires: Ciudad Argentina, 1995. p. 35), entendem o sistema
jurídico como uma máquina de impedir, orientada pelo código do fracasso, cujos
mandamentos são: art. 1º - não pode; art. 2° - no caso de dúvida, abstenha-se;
art. 3° - se é urgente, espere; art. 4° - sempre é mais prudente não fazer
coisa alguma.
Sem ousar, o direito não evolui. Mas
ousar não é agir irresponsavelmente; é, sim, procurar extrair do sistema
jurídico o máximo de seu conteúdo, como fundamento para a concretização de seus
princípios mais importantes, de maior hierarquia, que estão muito acima de
meras normas isoladas." (grifei)
Evidente que não se trata de violar o
dogma da separação de poderes. A formulação teórica examinada por Aristóteles,
Locke, Rousseau e Kant, com a feição decisiva de Montesquieu, em sua clássica
obra de L´espirit des lois, deve continuar.
Cito Fabrício Motta[5]:
"O princípio da separação, em
suas origens, foi, talvez, o mais sedutor, magnetizando os construtores da
liberdade contemporânea e servindo de inspiração e paradigma a todos os textos
de lei Fundamental, como garantia suprema contra as invasões do arbítrio nas
esferas da liberdade política".
Essa assertiva casa com a importância
da Revolução Francesa, na época de sua adoção inicial, através do artigo 16, de
26 de agosto de 1789: "Toda sociedade que não assegura a garantia dos
direitos, nem determina a separação de poderes, não tem Constituição".
O importante teórico já citado
inicialmente, JOHN LOCKE, já externava uma preocupação quanto à concentração de
poderes e dizia "(...) seria provocar uma tentação demasiado forte para a
fragilidade humana, sujeita à ambição, confiar aos que já têm o poder de fazer
leis o poder de as executar. Ficariam então, em condições de se dispensarem de obedecer
às leis que fazem e em condições de redigi-las e de aplicá-las apenas em função
dos seus interesses".
Continua Fabrício Motta[6]:
"O controle do exercício de
poder político é o principal alvo da concepção em tela. Cada poder corresponde
a um limite ao exercício das atividades do outro, compondo o teoricamente
harmonioso conjunto de freios e contrapesos (checks and balances), destinado a
proteger o cidadão da tirania que representaria a junção dessas funções em uma
só autoridade. Nesse sentido, com fundamento na sempre invocada formulação de
Montesquieu, um Estado é livre quando nele o poder limita o poder, visto que a
condição para o estabelecimento do respeito às leis e da segurança dos cidadãos
é a de que nenhum poder seja ilimitado. A ideia de consenso social, desta
maneira, assenta-se no equilíbrio de forças, ou na paz estabelecida pela ação e
reação dos grupos sociais."
É significativo o entendimento de
Norberto Bobbio[7]:
"(...) Estado de direito em
sentido forte, que é aquele próprio da doutrina liberal, são partes integrantes
todos os mecanismos constitucionais que impedem ou obstaculizam o exercício
arbitrário e ilegítimo do poder e impedem ou desencorajam o abuso ou o
exercício ilegal do poder".
Na ADIn n.º 975-3[8],
o Supremo Tribunal Federal entendeu que "As recíprocas interferências dos
poderes do Estado, uns nos outros, desde que ocorrentes nas hipóteses
constitucionalmente autorizadas, não provocam a ruptura do sistema".
Em outra oportunidade o Min. Marco
Aurélio, no RE nº 131661, inverbis:
"(...) Na dicção sempre oportuna
de Celso Antônio Bandeira de Mello, mesmo nos atos discricionários não há
margem para que a administração atue com excesso ou desvios ao decidir,
competindo ao judiciário a glosa cabível".
O intérprete atual continua com a
visão distorcida de que o exame do mérito administrativo não pode ser
visualizado pelo Poder Judiciário. Deve-se rejeitar essa assertiva. Digo até
este dogma. A nova visão de Direito Público exige uma interpretação
pospositivista. Essa nova linha de raciocínio quebra estruturas turvas e
autoritárias dos administradores. A jurisprudência precisa de uma oxigenação. E
esse novo respirar encontrará dentro da Administração Pública a eficiência e
resultados de novíssimas relações entre sociedade e Estado. Em resumo: uma nova
conceituação de Direito e uma nova interpretação constitucional do Direito
Administrativo.
No atual estágio do Direito
Administrativo-Constitucional prevalece a exegese diante dos princípios
constitucionais. A jurisprudência calcada no autoritarismo estatal soçobrou.
Este é o momento de quebrar a lenda de que é vedado ao Poder Judiciário
examinar o mérito da decisão administrativa.
IV. Conclusão
Em face do
exposto, indefiro o pedido de efeito suspensivo, mantendo a decisão
agravada, ao menos até julgamento final do recurso pelo órgão colegiado.
Oficie-se ao juízo de primeiro
grau para que, no prazo de 10 (dez) dias, preste as informações que julgar
necessárias, devendo ser-lhe comunicado, no mesmo expediente, sobre o teor
desta decisão.
Intimem-se os agravados para, no
prazo de 10 (dez) dias, apresentarem contrarrazões ao recurso, podendo juntar
documentos.
Após, encaminhem-se os autos ao
Ministério Público junto a esta Corte para que intervenha como de direito, na
condição de fiscal da lei, no mesmo prazo.
P. Int. Cumpra-se.
São Luís, 28de março de 2014.
Desembargador Marcelo Carvalho
Silva
Relator Substituto
[1] Princípio do Acesso à Justiça - "in Dicionário de
Princípios Jurídicos", Coordenação: RICARDO LOBO TORRES, EDUARDO TAKEMI
KATAOKA e FLÁVIO GALDINO, Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, pp. 20/21.
[4] In Viabilidade da Transação entre o Poder Público e Particular,
Juris Plenum nº 91, novembro de 2006
[8]Constituição Federal - Avanços, contribuições e modificações no processo
democrático brasileiro, pág., 23.