Lula e Marco Aurélio
Mello numa mesma solenidade em 2006. O Ministro enxergou com clareza a extensão dos crimes cometidos |
No dia 4 de maio de 2006, o ministro
Marco Aurélio assumiu, pela segunda vez, o cargo de presidente do Tribunal
Superior Eleitoral.
Fez um discurso primoroso (íntegra aqui). No exercício da Presidência da
República, estava o senador Renan Calheiros (acho que Viajandão Inácio da Silva
estava fora do país). Vejam que coisa: Márcio Thomaz
Bastos, então ministro da Justiça e hoje advogado de um dos réus do mensalão,
estava presente à posse. E ouviu do ministro as
seguintes palavras. Leiam com atenção! Os destaques são meus. Volto depois.
(…)
Infelizmente, vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira – composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta – um misto de revolta, desprezo e até mesmo repugnância.
Infelizmente, vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira – composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta – um misto de revolta, desprezo e até mesmo repugnância.
São tantas e tão deslavadas as mentiras,
tão grosseiras as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se pode cogitar somente de
uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético que parece dividir o País em dois
segmentos estanques – o da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o poder
de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande massa comandada que, apesar
do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e progredir.
Não há, nessas afirmações – que lamento
ter de lançar -, exagero algum de retórica.
Não passa dia sem depararmos com
manchete de escândalos. Tornou-se quase banal a notícia
de indiciamento de autoridades dos diversos escalões não só por um crime, mas
por vários, incluindo o de formação de quadrilha, como por último consignado em
denúncia do Procurador-Geral da República, Doutor Antônio Fernando Barros e
Silva de Souza. A
rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os já
conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente,como se tudo fosse muito natural
e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos, nas mais
diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro passado
justificasse os erros presentes.
A repulsa dos que sabem o valor do
trabalho árduo se transformou em indiferença e desdém, como acontece quando,
por vergonha, alguém desiste de torcer pelo time do coração e resolve ignorar
essa parte do cotidiano. É a tática do avestruz:
enterrar a cabeça para deixar o vendaval passar. E seguimos como se nada estivesse acontecendo. Perplexos,
percebemos, na simples comparação entre o discurso oficial e as notícias
jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do faz de conta.
Faz
de conta que não se produziu o maior dos escândalos
nacionais, que os culpados nada sabiam – o que lhes daria uma carta de alforria
prévia para continuar agindo como se nada de mal houvessem feito.
Faz
de conta que não foram usadas as mais descaradas
falcatruas para desviar milhões de reais, num prejuízo irreversível em país de
tantos miseráveis.
Faz
de conta que tais tipos de abusos não continuam se
reproduzindo à plena luz, num desafio cínico à supremacia da lei, cuja
observação é tão necessária em momentos conturbados.
Se, por um lado, tal conduta preocupa,
porquanto é de analfabetos
políticos que se alimentam os autoritarismos, de outro surge insofismável a
solidez das instituições nacionais.
O Brasil, de forma definitiva e
consistente, decidiu pelo Estado Democrático de Direito. Não paira dúvida sobre
a permanência do regime democrático. Inexiste, em horizonte próximo
ou remoto, a possibilidade de retrocesso ou desordem institucional.
De maneira adulta, confrontamo-nos com
uma crise ética sem precedentes e dela haveremos de sair melhores e mais
fortes.
Em Medicina, “crise” traduz o momento
que define a evolução da doença para a cura ou para a morte. Que saiamos dessa
com invencíveis anticorpos contra a corrupção, principalmente a dos valores
morais, sem a qual nenhuma outra subsiste.
Nesse processo de convalescença e
cicatrização, é inescusável apontar o papel do Judiciário, que não pode se
furtar de assumir a parcela de responsabilidade nessa avalancha de delitos que
sacode o País.
Quem
ousará discordar que a crença na impunidade é que
fermenta o ímpeto transgressor, a ostensiva arrogância na hora de burlar todos
os ordenamentos, inclusive os legais?
Quem
negará que a já lendária morosidade processual
acentua a ganância daqueles que consideram não ter a lei braços para alcançar
os autoproclamados donos do poder?
Quem
sobriamente apostará na punição exemplar dos responsáveis pela sordidez
que enlameou gabinetes privados e administrativos, transformando-os em balcões
de tenebrosas negociações?
Essa pecha de lentidão — que se
transmuda em ineficiência — recai sobre o Judiciário injustamente, já que não
lhe cabe outro procedimento senão fazer cumprir a lei, essa mesma lei que por
vezes o engessa e desmoraliza, recusando-lhe os meios de proclamar a Justiça
com efetividade, com o poder de persuasão devido.
Pois bem, se aqueles que deveriam buscar
o aperfeiçoamento dos mecanismos preferem ocultar-se por trás de negociatas,
que o façam sem a falsa proteção do mandato. A República não suporta mais tanto
desvio de conduta.
(…)
Àqueles que continuam zombando diante de tão simples obviedades, é bom lembrar que não são poucos os homens públicos brasileiros sérios, cuja honra não se afasta com o tilintar de moedas, com promessas de poder ou mesmo com retaliações, e que a imensa maioria dos servidores públicos abomina a falta de princípios dos inescrupulosos que pretendem vergar o Estado ao peso de ideologias espúrias, de mirabolantes projetos de poder.
Aos que laboram em tamanhas tolices,
nunca é demais frisar que se a ordem jurídica não aceita o desconhecimento da
lei como escusa até do mais humilde dos cidadãos, muito menos há de admitir a
desinformação dos fatos pelos agentes públicos, a brandirem a ignorância dos
acontecimentos como tábua de salvação.
(…)
No que depender desta Presidência, o Judiciário compromete-se com redobrado desvelo na aplicação da lei.
Não haverá contemporizações a pretexto
de eventuais lacunas da lei, até porque, se omissa a legislação, cumpre ao
magistrado interpretá-la à luz dos princípios do Direito, dos institutos de
hermenêutica, atendendo aos anseios dos cidadãos, aos anseios da coletividade.
Que ninguém se engane: não ocorrerá
tergiversação capaz de turbar o real objetivo da lei, nem artifício conducente
a legitimar a aparente vontade das urnas, se o pleito mostrar-se eivado de
irregularidades.
Esqueçam, por exemplo, a aprovação de
contas com as famosas ressalvas. Passem ao largo das chicanas, dos jeitinhos,
dos ardis possibilitados pelas entrelinhas dos diplomas legais.
Repito: no que depender desta Cadeira, não haverá condescendência
de qualquer ordem.
Nenhum fim legitimará o meio
condenável. A lei será aplicada com a maior austeridade possível – como, de
resto, é o que deve ser. Bem se vê que os anticorpos de que já falei começam a
produzir os efeitos almejados. Esta é a vontade esmagadora dos brasileiros.
No mais, é aguçar os sentidos, a
coragem, é aumentar a dedicação, acurar a inteligência e desdobrar as horas e
as forças, no intuito único de servir à aspiração geral por um pleito limpo,
civilizado e justo. É o que o Brasil merece e espera.
É o que solenemente prometo ao assumir
esta Presidência”.
Muito obrigado – Ministro Marco Aurélio
Melo.
O ministro lamenta a banalização da
corrupção e se refere explicitamente à denúncia formulada pelo então procurador-geral
da República: “Tornou-se quase banal a notícia de
indiciamento de autoridades dos diversos escalões não só por um crime, mas por
vários, incluindo o de formação de quadrilha, como por último consignado em
denúncia do Procurador-Geral da República, Doutor Antônio Fernando Barros e
Silva de Souza”. E tem consciência do papel que está
reservado ao Poder Judiciário: “Nesse processo de convalescença e
cicatrização, é inescusável apontar o papel do Judiciário, que não pode se
furtar de assumir a parcela de responsabilidade nessa avalancha de delitos que
sacode o País.”
Invoco também as
palavras de Jesus Cristo, escritas em Mateus 23.33:
“Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da
condenação do inferno?”.